quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Arte de Paco de Lucía transforma o mundo em um grande violão

Quando começa o canto da guitarra, "es inútil callarla, es imposible callarla", escreveu o poeta García Lorca (1898-1936). Na noite de segunda-feira, 16 anos após sua aparição anterior, a guitarra (violão, para nós) de Paco de Lucía voltou a soar em São Paulo.
Com duas horas de atraso --por causa de sérios problemas com o voo--, Paco começou a tocar às 23h (o horário previsto era 21h).
Entrou quando a plateia, impaciente, começava a vaiar. Saiu aplaudido à 1h, na madrugada de terça-feira.
"Passei um dia muito difícil", falou enquanto tentava afinar o instrumento. "E a guitarra também fica louca", completou.
A BANDA
Ele começa a construir a música sempre de "baixo para cima". Parte do "palo flamenco" --conjunto de parâmetros poético-sonoros que definem forma e estilo-- para improvisar, no início apenas poucas notas, pequenas frases.
Seu foco criador principal está na harmonia. É através dos acordes encadeados que ele se liberta do peso das origens. Dela brotam os cachos de notas --as escalas apoiadas que têm levado ao êxtase admiradores há pelo menos três décadas.
Depois do solo inicial, entram o percussionista Piraña e os dois cantores, Antonio Flores e David Maldonado. A percussão faz ressoar a guitarra, como se amplificasse as batidas e os abafamentos da mão direita.
Os cantores são pura raiz, são eles que seguram os voos estilísticos dos demais.
No quarto número, a banda já está inteira no palco: Alain Pérez (contrabaixo), Antonio Serrano (harmônica e teclados) e Antonio Sanches (guitarra).
Cada um deles parece encorpar cuidadosamente o violão de Paco, que, assim, se liberta.
A DANÇA
A grande surpresa, porém, veio quando o "bailaor" (bailarino popular da região de Andaluzia) Antonio Fernández --conhecido como "El Farru"-- ocupou o tablado no centro do palco.
Seus pés reproduzem o jogo de tempo-contratempo da música em alta velocidade, fazem desenhos rítmicos que só dois pares de palmas podem realizar, e reproduzem o tempo dos "rasgueos" da guitarra (aquelas subidas e descidas rápidas da mão direita em duas ou mais cordas).
Não se trata apenas de velocidade: o efeito é dado antes de tudo pelos acentos, mas também pela dinâmica (a gradação dos volumes).
Os passos de Farru levaram o público ao delírio.
Na segunda metade do espetáculo Paco soltou as escalas rápidas: como é possível tanta naturalidade diante do assombroso?
Em Havana, na estreia da turnê no mês passado --à qual este crítico teve a chance de assistir-- estava ainda mais relaxado e feliz.
No final, todos improvisaram, com destaque para a harmônica de Serrano, que adiciona à textura as notas agudas sustentadas que faltam à guitarra.
No meio de sete músicos excepcionais, Paco de Lucía transforma o mundo em um grande violão.

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